Decidiram que Pink Floyd era, na verdade, uma banda de Forró
Por Felipe Bochi Damian
OAB/RS 115.259 – Jobim Advogados Associados
Email: felipe.damian@jobimadvogados.com.br
Reza a lenda que no Código de Processo Penal há um artigo que diz o seguinte:
Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.
Portanto, em tese, seguindo o rito previsto na legislação, durante uma audiência, as perguntas à testemunha serão feitas de maneira direta pelas partes. E, havendo pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.
Ocorre que, na prática forense, ainda persiste o modelo anterior, aquele em que o juiz era responsável por inquirir as testemunhas de maneira direta. Portanto, a testemunha, na audiência, muitas vezes já esgotou todas as discussões fáticas quando é “liberada” para o interrogatório das partes. São as partes que acabam complementando sobre os pontos não esclarecidos.
A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal teve, recentemente (28/04/2020), a oportunidade de fazer cessar as violações ao art. 212 do CPP, que ocorrem diariamente nas audiências. Porém, ao debruçar-se sobre um caso concreto, onde a juíza, em uma audiência de instrução e julgamento, seguindo a “normalidade” da práxis jurídica, havia inquirido testemunhas antes de possibilitar as partes de formularem suas perguntas, negou que existisse teratologia e mais: eventual nulidade somente poderia ser reconhecida havendo demonstração de prejuízo na “inversão da ordem de inquirição”.
Para além da discussão sobre nulidades processuais e a suposta necessidade de demonstração de prejuízo (tema polêmico na doutrina), o transtorno é enorme: a lei diz uma coisa, mas, de acordo com o min. Alexandre de Moraes, que proferiu o voto vencedor (foi seguido pelo min. Luís Roberto Barroso e min. Luiz Fux), a intenção do legislador não era bem essa (era apenas evitar que todas as perguntas passassem pelo juiz). A lei, portanto, para o ilustre ministro, não quis dizer bem… o que ela diz.
A ausência de uma decisão que esteja dentro de uma moldura semântica minimamente adequada é equivocada, justamente porque as palavras… dizem coisas. Como bem lembra Mauro Cappelletti (juízes legisladores?) sobre a função do intérprete, em uma analogia brilhante: o músico, ao interpretar uma canção, põe nesse ato uma dose de si mesmo, das suas percepções e sentimentos sobre a sonoridade, mas não pode exercer papel criativo e trocar a letra e/ou harmonia de uma canção original. O intérprete musical, portanto, pode inserir as suas particularidades (melancolia, alegria, erudição) na versão, mas dentro de uma razoabilidade semântica mínima – não pode criar algo diferente daquilo que a música interpretada é.
Do mesmo modo, o julgador, ao interpretar a lei, vai naturalmente inserir, no ato interpretativo, suas percepções particulares (visões de mundo), mas ao fazê-lo, não pode romper com uma moldura semântica mínima e, por consequência, com a própria integridade do direito. Não podemos permitir que, no estado de direito, existam interpretações jurídicas que esvaziem o sentido semântico das coisas. Portanto, podemos aceitar uma interpretação dançante de “wish you were here”, mas, por questão de integridade, não podemos decidir que Pink Floyd era, na verdade, uma banda de forró. Não podemos mudar o sentido das coisas.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-abr-28/juiz-interrogar-testemunha-antes-advogados-nao-gera-nulidade
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